Declaração de Aruba quer Proteção aos Direitos Digitais de Instituições de Memória

Imagem da página inicial do repositório digital para a construção do Museu da Democracia,
lançado em 08/01/2024 pelo Instituto Brasileiro de Museus

Conceber um projeto para o “Museu da Democracia”, foi demanda que surgiu para o Ibram a partir do impacto causado pelos ataques de 01/08/2023 aos palácios na Praça dos Três Poderes em Brasília. Esta solicitação reverberou na Coordenação-Geral de Sistemas de Informação Museal – CGSIM/Ibram, e impulsionou reflexões sobre respostas que o campo da cultura digital poderia apresentar ao projeto. Avaliamos que o ambiente digital teve papel determinante no contexto que levou a estes acontecimentos trágicos para a nossa democracia, e por isso entendemos que iniciativas que envolvam o estabelecimento de infraestrutura pública para armazenamento organizado e perene de acervos digitais podem contribuir para a atualização e efetividade da proposta do Ibram para o “Museu da Democracia”.

Como já vínhamos pensando sobre a importância de uma política para memória digital, avançamos em conversas junto ao Comitê Gestor da Internet sobre a possibilidade do Ibram tornar-se instituição certificadora para museus brasileiros interessados em fazer uso do Domínio de Nível Superior / Top Level Domain (TLD)* “museu.br“. O objetivo é desenvolver o domínio como espaço de implementação para modelos de interoperabilidade (acessibilidade) e preservação para o patrimônio cultural digital brasileiro, pois entendemos que a garantia de acesso a estes recursos não pode depender de infraestruturas proprietárias subordinadas a empresas de tecnologia estrangeiras.

Em meio a estas reflexões e diálogos, tivemos notícia do lançamento agora em abril passado da “Declaração de Proteção aos Direitos Digitais de Instituições de Memória”. O fato é que Aruba, a pequena nação insular do sul do Caribe, tornou-se o primeiro país a assinar a Declaração, que articula um conjunto básico de direitos digitais de instituições de memória considerado como necessário para que estas possam desempenhar sua função essencial no mundo digital e cada vez mais interconectado de hoje. As instituições de memória — bibliotecas, arquivos, museus, centros de documentação, cinematecas, etc. — foram até hoje capazes de preservar e garantir acesso público a recursos informacionais em mídia impressa porque puderam contar com direitos e privilégios decorrentes da propriedade dos meios físicos em suas coleções.

Segundo a Declaração dos 4 Direitos Digitais para Instituições de Memória lançada por Aruba, para manter suas funções tradicionais no mundo digital, instituições de memória devem possuir os direitos afirmativos de:

  • COLETAR bens em formato digital, seja através da digitalização de coleções físicas, seja através da compra no mercado ou por outros meios legais;
  • PRESERVAR bens digitais e, quando necessário, reparar, fazer backup ou reformatá-los, para garantir sua existência e disponibilidade a longo prazo;
  • PROVER ACESSO a bens digitais, ao menos em modo controlado, para técnicas avançadas de pesquisa e para usuários onde quer que estejam—online;
  • COOPERAR com outras instituições de memória, compartilhando ou transferindo coleções de bens digitais, para promover a preservação e o acesso.

Na medida em que nos identificamos com a ideia dos direitos digitais para instituições de memória, e com os termos da Declaração — iniciativa absolutamente pertinente para o campo da memória digital pública — buscamos entender a origem e o sentido da iniciativa. Tudo começa quando Peter Scholing, cientista da informação e pesquisador na Biblioteca Nacional de Aruba (BNA), toma conhecimento da luta do ‘Internet Archive‘** com o campo editorial para proteger o acesso dos usuários de bibliotecas a e-books. Tal disputa jurídica promoveu debate que gerou reflexões e argumentos pertinentes sobre o papel de instituições de memória na era digital, e resultou em um Relatório: “Securing Digital Rights for Libraries: Towards an Affirmative Policy Agenda for a Better Internet (2022)“.

O bibliotecário de Aruba considerou que os argumentos levantados no Relatório eram muito bons, mas entendeu que seria necessário ampliar o escopo da reflexão para proteger não somente bibliotecas, e sim todas as instituições de memória, ou melhor, todo o universo GLAM***. E com isso nasceu a ideia da “Declaração dos 4 Direitos Digitais para Instituições de Memória”, que se torna virtualmente uma declaração universal em favor do acesso aberto à informação em meio digital, alinhada com as Metas de Desenvolvimento Sustentável da ONU (UN 2030 Agenda/ Sustainable Development Goals, .10 –assegurar o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais, de acordo com a legislação nacional e os acordos internacionais“.)

Vale dizer que a relação entre Peter Scholing e o “Internet Archive” começa em 2018, com o lançamento do projeto “Coleção Aruba” — iniciativa para preservar digitalmente a história da ilha caribenha nos servidores da biblioteca digital norte-americana. O passado turbulento de Aruba, que teve sua população indígena colonizada inicialmente pelos espanhóis, e posteriormente pelos holandeses, guarda registros importantes do comércio de escravizados e das rotas petroleiras da Venezuela. Por sua localização geográfica, a ilha está sujeita à eventos climáticos catastróficos, e pareceu pertinente para a biblioteca digital sem fins lucrativos norte-americana se oferecer para realizar a digitalização e preservação de todo o conteúdo do patrimônio cultural local.

O ‘problema’ de Aruba, e a ‘solução’ Internet Archive

Um mapa da ilha de Aruba, com data de 1794. Imagem: Archivo Museo Naval de Madrid

De acordo com o “Internet Archive”, a “Coleção Aruba” “inclui cerca de 40.000 documentos, 60.000 imagens, 900 vídeos, 45 arquivos de áudio e sete objetos 3D, totalizando 67 (sub)coleções temáticas e/ou institucionais”. Além de adicionar tudo aos seus próprios servidores, o “Archive” afirma que também está fazendo backup de tudo usando a rede descentralizada Filecoin. Não nos parece ideal que o processo de digitalização do patrimônio cultural de um país seja terceirizado para uma empresa sem fins lucrativos estrangeira, e seria desejável que instituições de memória ao redor do mundo tivessem acesso direto a estes recursos para digitalização de seus acervos. O “Internet Archive”, por seu lado, não havia ainda atuado dessa maneira antes, digitalizando todo o conteúdo de um país, mas já realizou parcerias com projetos e instituições ao redor do mundo, como por exemplo o projeto de preservação da literatura de Bali, província da Indonésia, e está aberto para trabalhar com outros países neste sentido.

Quando pensamos em uma política de preservação digital para o Brasil, é importante compreender o papel desempenhado pelo “Internet Archive” para a preservação digital do planeta. A organização sem fins lucrativos foi fundada em 1996 por Brewster Kahle e, até o momento, hospeda 99 petabytes de dados únicos, ou 99.000 terabytes. Mais da metade desse total é do serviço “Wayback Machine“, sua coleção de sites arquivados, que constitui a única referência de arquivamento seriado, desde 1996, na escala da web. A citação abaixo ilustra o escopo da empreitada do “Archive” em termos de volume e diversidade, evidencia o enorme valor (material e imaterial) das coleções geradas, e de certa forma explica os motivos para os ataques jurídicos que começam a ameaçar a perenidade de acervo tão importante para o mundo inteiro. Como protegê-lo?!

O Archive também hospeda coleções de fitas VHS, jogos de computador antigos, instruções para conjuntos de Lego, calculadoras emuladas, filmes patrocinados e, também, postagens do Google Plus. Apesar de seu óbvio valor para a cultura digital, o serviço do Internet Archive está ameaçado hoje por um conjunto de batalhas judiciais relacionadas aos seus esforços de preservação, como a decisão do ano passado de vedar ao Archive o serviço de empréstimo de ebooks, e também um processo da indústria da música direcionado ao projeto Great 78, que visa arquivar discos antigos.

The Internet Archive is now hosting Aruba’s history, by Wes Davies – The Verge – 10/04/2024

No ótimo relatório que originou a Declaração para Proteção de Instituições de Memória são apresentadas evidências sobre os riscos do atual cenário para a preservação da memória cultural, pois “quando a informação e o entretenimento perdem seu valor monetário percebido, os players comerciais não têm incentivo para mantê-los acessíveis, resultando em grandes lacunas em nosso registro cultural coletivo”.

“Por exemplo, o Myspace deletou uma estimativa de 53 milhões de arquivos de música de seus servidores, apagando o que restava de um centro outrora animado para músicos em ascensão no início dos anos 2000. Mais recentemente, a HBO removeu 200 episódios do clássico programa infantil Vila Sésamo, além de outros 36 títulos de sua plataforma HBO Max. O que aconteceu com a promessa da era digital de permitir que atores menores aumentassem o acesso para todos? Neste mundo de licenciamento em vez de propriedade, o detentor dos direitos tem quase controle completo sobre o que está disponível em qualquer momento—e, pior ainda, para sempre após—não importa o que seus clientes pensaram quando clicaram no botão ‘comprar’.”

“Statement Protecting Digital Rights of Memory Institutions” (Report — “Securing Digital Rights for Libraries: Towards an Affirmative Policy Agenda for a Better Internet”)

Um recente e cuidadoso estudo do Pew Research sobre “links podres” (linkrot) na Internet — When Online Content Disappears — ilustra o tamanho do problema que temos no âmbito da memória digital. O principal anúncio da pesquisa assusta: mais de 1/3 (38%) do conteúdo da web de 2013 já desapareceu. O fenômeno impacta diretamente as referências da Wikipedia, que tem 23% de links para notícias quebrados, e registra o desaparecimento de 21% dos sites .gov(!!).

When Online Content Disappears” (Pew Research, 2024): 38% das páginas web que existiam em 2013 já não são mais acessíveis no espaço de uma década.

Vale destacar como este aspecto de desaparecimento da memória digital está relacionado diretamente com o 1º direito que, segundo a Declaração de Aruba, deve ser garantido à todas as instituições de memória:

  • COLETAR bens em formato digital, seja através da digitalização de coleções físicas, seja através da compra no mercado ou por outros meios legais.

O direito de coletar e preservar conteúdos acessíveis de maneira aberta na Internet é crucial para garantir que museus, arquivos e bibliotecas sigam cumprindo suas funções de interesse público em relação à memória digital. Se as empresas envolvidas na criação das aplicações de “inteligência artificial”, que hoje invadem o mercado de software, podem invocar o “uso justo” (fair use) para “raspar” o conteúdo da Internet e assim treinar seus Grandes Modelos de Linguagem (LLMs) para implementar serviços comerciais como o ChatGPT, certamente instituições de memória podem fazer o mesmo para garantir a preservação do patrimônio cultural digital e assim cumprir sua missão de atender ao interesse público.

No caminho de Aruba

Neste post, que começa com a reflexão sobre o que poderia constituir um “Museu da Democracia” a ser lançado em 2024 no Brasil, nos parece pertinente afirmar que a democracia, e toda a humanidade, perdem quando interesses movidos exclusivamente pelo lucro superam as considerações de interesse público sobre o acesso à informação, conhecimento e cultura. Em um mundo sem os serviços do “Internet Archive” — que está agora sob ataque da indústria de conteúdos digitais — e sem instituições de memória com reais condições para cumprir a sua função no ambiente digital, a informação irá aparecer (e desaparecer) apenas de acordo com os interesses de empresas—e não por seu valor para o público.

Na sequência, neste blog, informaremos mais sobre a implementação do domínio ‘museu.br’ pelo Instituto Brasileiro de Museus, e sobre como o trabalho do “Internet Archive” é inspiração para esta iniciativa.

São estes os motivos que nos levam a concordar com a ”Declaração dos 4 Direitos Digitais para Instituições de Memória” — precisamos prover espaço (infraestrutura) e poder às instituições de memória para que continuem preservando bens do patrimônio cultural também em formato digital, e esta tarefa não é trivial. Iniciativas que envolvam o estabelecimento de infraestrutura pública para armazenamento organizado e perene de acervos digitais, neste momento, são fundamentais para garantir a preservação da memória digital, e da democracia.

Referências:

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