Trinta anos ou mais já se vão desde que a cultura entrou em processo de digitalização, o qual se torna cada vez mais intenso e omnipresente. Isto se dá contando com uma infraestrutura realizada por empresas estrangeiras de tecnologia, e seguimos sem uma reflexão séria no Brasil sobre a importância de uma política nacional de preservação para a memória digital do patrimônio cultural brasileiro. No momento em que nos preparamos para mais um salto de paradigma tecnológico no ambiente digital, com a chegada das aplicações de IA (inteligência artificial) ao público em geral, nos parece fundamental e urgente promover debate aprofundado sobre a relação da tecnologia digital com a memória no contexto do patrimônio cultural.
A ascendência da mídia digital altera drasticamente algumas definições estabelecidas de “memória cultural” baseadas na lógica dos arquivos impressos, que veio a concretizar o modelo de funcionamento de arquivos, bibliotecas e museus no século 20. Em seu livro “Rogue Archives”, Abigail De Kosnik nos recorda que “desde o final do século 19, a memória – não a memória individual privada, mas a memória pública, coletiva – foi domínio no estado.” Já no século 21, as práticas da cultura digital impulsionam fluxos dinâmicos e imprevisíveis que vêm redefinindo e ampliando o conceito de maneira constante nos últimos anos.
Especialmente a partir de 2002, com a chegada da web 2.0 (conhecida como a ‘web de leitura e escrita’), as instituições de memória em escala global deixaram de cumprir seu papel de documentar e conservar o que é reconhecido como a memória cultural contemporânea, para o acesso de gerações futuras. Na realidade, nos primeiros anos da cultura digital (90s), a prática da preservação da memória digital envolveu em sua maior parte indivíduos que não possuem formação em ciências da informação, e carecem de suporte institucional. A despeito do interesse em ascensão por parte das instituições de memória em relação aos “acervos digitais” nos anos 2000, as práticas associadas a acervos na cultura digital emergiram principalmente e de forma mais vigorosa entre amadores, como fãs, hackers, piratas e voluntários.
Em resposta à crescente demanda por “arquivamento” em formato digital, a década de 2000 viu surgir diversas modalidades de “publicação pessoal online” e seus “containers”, como blogs, wikis, gerenciadores de conteúdo (CMSs) e repositórios digitais. Na segunda metade da década, startups lançaram numerosas iniciativas inovadoras para atrair usuários interessados em “postar” seus conteúdos online, muitas vezes sem uma consideração detalhada pelos termos de uso aos quais estavam sujeitos. Os serviços e suas startups foram então rapidamente assimilados pelas grandes corporações da internet, o que resultou em monopólios globais na disponibilização de conteúdos culturais digitais.
Para a geração que acompanhou a chegada da web no Brasil a partir dos anos 90, e observou uma significativa revolução no universo da comunicação nos anos 2000, é difícil compreender como toda a liberdade e equanimidade promovida pelo protocolo TCP/IP veio a tornar-se algo completamente diferente nos anos 2010. O advento das mega plataformas digitais como Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), Google (Orkut, YouTube, Android App Store), Apple (iPhone App Store), eX-Twitter, entre outras, reintroduziu no ambiente digital os poderosos intermediários que pensamos haver transcendido ao migrar da cultura das ondas analógicas, com seus gatekeppers, para a Web ‘aberta e descentralizada’.
Ao favorecer as plataformas e o conforto de suas funcionalidades bem resolvidas, perdemos a noção da necessidade de uma infraestrutura digital pública, e esvaziamos o espaço democrático da inernet aberta. As grandes corporações que engoliram as startups tornaram-se monopólios (1) nos quais o acesso a esses conteúdos passou a ser regulado por algoritmos proprietários e opacos, sem qualquer transparência, e (2) que não oferecem nenhuma garantia de preservação dos conteúdos no decorrer do tempo. Entendemos que o momento é propício para que instituições de memória e universidades assumam o seu papel na implementação da política pública de memória digital.
Para ilustrar o volume da perda, é relevante recordar o caso do Orkut no Brasil. Criada pelo Google em 2002, a plataforma encerrou suas funcionalidades dinâmicas em 2014, mantendo seu conteúdo disponível para download até meados de 2016. O patrimônio cultural ali gerado e armazenado deveria ter evoluído para um acervo, servindo como fonte de pesquisa sobre a produção de capital social e cultural de uma nação, e, principalmente, como registro da dinâmica social de interconexão em rede do povo brasileiro, que se destacou na época por seu caráter único, e por números de participação estrondosos. Para se ter uma ideia da magnitude do que foi perdido, o “Arquivo de Comunidades do Orkut”, que abrangeu grupos públicos de janeiro de 2004 a setembro de 2014, contou com mais de 51 milhões de comunidades, 120 milhões de tópicos e mais de 1 bilhão de interações *
Caso o modelo de memória pública institucional, no qual o Estado desempenha um papel central, não mais atenda às exigências de registro e preservação da memória cultural, agora predominantemente gerada e armazenada em meios digitais, torna-se crucial a formulação de projetos que explorem novos modelos de sustentabilidade e governança para acervos culturais públicos, ou comuns. O cenário apresenta numerosas e complexas questões, assim como os desafios técnicos, sociais e políticos associados à criação de novas experiências e práticas nesse contexto, mas precisamos de atitudes concretas e urgentes.
A parceria do Ibram com as Universidades, no desenvolvimento e implementação do projeto Tainacan, é exemplo de estratégia com este objetivo. O Tainacan é uma ferramenta flexível e poderosa baseada em WordPress, que permite a gestão e a publicação de coleções digitais com a mesma facilidade de se publicar posts em blogs, mas mantendo todos os requisitos de uma plataforma profissional para repositórios. Oferecer esta ferramenta como possibilidade de autonomia para as instituições de memória publicarem seus acervos digitais de maneira organizada e integrada na Internet constitui, em si, um passo estruturante na organização do campo dos acervos digitais de cultura no Brasil.
Mas trata-se apenas de um começo, um estágio inicial no caminho para uma política nacional. E somente uma política nacional poderá estabelecer a bases para um projeto sustentável que garanta a preservação digital do que importa guardar na perspectiva do interesse publico.
É pertinente destacar que, no momento em que o poder público fomenta reflexões sobre políticas públicas envolvendo Inteligência Artificial (IA), serão as bases de dados que abrigam conteúdos textuais, audiovisuais, e seus metadados, a principal matéria prima para modelos de linguagem (LLMs) que potencializam serviços como o ChatGPT. A organização dos acervos do patrimônio cultural a partir de uma política pública, potencializa a criação de serviços de IA especializados em informação cultural de interesse comum, e pode alavancar um novo campo para pesquisa e desenvolvimento com base na riqueza da diversidade cultural brasileira.
O Ibram, com o lançamento da ‘Brasiliana Museus’, almeja conceber e propor iniciativas que impulsionem as instituições de memória a integrar arranjos coletivos para a organização e preservação digital do patrimônio cultural brasileiro. Para 2024, o Ibram planeja explorar possibilidades de implementação, em termos de arquitetura de rede para arquivamento web, de um framework técnico para preservação digital de websites de museus. Ainda no tema da memória digital, está previsto o lançamento experimental de uma aplicação de rede social que comporte protocolos de preservação e acessibilidade dos conteúdos postados, a ser ofertada como alternativa para os museus brasileiros dialogarem com seus públicos online.
Queremos abrir o diálogo sobre o tema com todos os interessados, e seguiremos postando atualizações sobre estes e outros projetos do Ibram para o campo da cultura e da memória digital, aqui neste espaço.