Decolonização digital de acervos: Inovação amplia o raio de ação de museus

Com a implementação do Projeto Tainacan no âmbito do Programa Acervo em Rede do Ibram, e a ênfase que a gestão da presidenta Fernanda Castro colocou na capacitação do Instituto em operar de maneira autônoma sua estratégia digital, novas frentes de atuação surgem para os museus brasileiros. Diante de novos desafios, e contando com ferramentas atualizadas, podemos vislumbrar as transformações que a era digital traz para os modos de atuação dos diversos agentes no campo da memória, suas novas dinâmicas e formas de organização.

Desde o lançamento da Brasiliana Museus em setembro de 2023, com a decisão de ampliar seu escopo para além dos museus do Ibram, e também o lançamento do novo serviço MuseusBR — apresentando a base do Cadastro Nacional de Museus, além do Painel Analítico e outros serviços a serem lançados em breve — o Ibram expandiu significativamente a oferta de serviços digitais para o campo museal. Esta possibilidade é resultado da efetivação, no Ibram, do “Modelo de Gestão para a Inovação em Software Livre“, concebido e operado para a realização do Projeto Tainacan no âmbito de uma instituição pública em parceria com a rede acadêmica.

Neste contexto ocorre a viagem do Coordenador Geral da CGSIM do Ibram, Dalton Martins, para Gotemburgo na Suécia, com o objetivo de dar sequência em sua participação na pesquisa patrocinada pelo Departamento de Estudos Históricos da Universidade de Gotemburgo, em colaboração com o “Museum of World Culture” (Museu da Cultura Mundial em Gotemburgo — “um museu criado pelo governo sueco como parte de uma discussão sobre a identidade cultural local, e que se tornou um foco de discussões públicas”*) e a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

Trata-se de um projeto de “decolonização de bases de dados etnográficas”, que emerge a partir de um debate sobre “repatriação digital de coleções” iniciado na Europa por ocasião do incêndio que em 2018 destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro. Merece destaque a estreita relação que o então “Museum für Völkerkunde” em Berlim e o “Göteborg Museu” em Gotemburgo mantinham com o Museu Nacional e outras instituições brasileiras desde a década de 1880, principalmente através da permuta de objetos de suas coleções para grandes exposições**.

O Instituto Brasileiro de Museus é inserido no projeto em 2021, momento em que a Universidade de Gotemburgo recebe recursos aportados pelo “Europeana Research Grants Programme”***, o que resulta em relatório apontando a aplicação de repositório digital Tainacan — desenvolvida com apoio do Ibram — como ferramenta adequada para prover suporte tecnológico ao processo de decolonização de bases de dados etnográficas.

Em 2022 aconteceu a primeira missão do projeto****, que levou cidadãos brasileiros da etnia Waiwai a uma visita in loco ao acervo do Museu da Cultura Mundial em Gotemburgo, na Suécia, em especial aos itens que dizem respeito aos povos originários brasileiros e ao seu povo específico. Os objetos foram coletados em 1925, e as informações sobre os itens são escassas. Para os Waiwai, reconhecer os objetos e ajudar a organizar a coleção, é importante por vários aspectos — “Muitos dos itens ainda estão sendo feitos hoje”, diz João Kaiuri, porta-voz dos Waiwai.

Na missão realizada neste mês (mar/2024) na Suécia, representantes da etnia Palikur estão realizando o reconhecimento de seus objetos, assim como os Waiwai em 2022. Os pesquisadores brasileiros e europeus envolvidos no projeto debatem, à luz da experiência com os grupos brasileiros, o desenho operacional para a estruturação dos métodos e práticas de decolonização de acervos. O objetivo é criar um arcabouço para o compartilhamento digital de coleções de patrimônio cultural de museus com as comunidades originárias, e o projeto espera propor metodologia e práticas que sejam aplicáveis também a outras coleções e contextos.

A participação do Prof. Dalton Martins na missão sublinha a importância do envolvimento do Ibram — e do Brasil — na concepção de soluções inovadoras para o campo museal, e para os acervos digitais, especialmente quando tratamos do tema da decolonização de acervos. Esta reflexão explora novas frentes de atuação para museus e especialistas em instituições de memória, agora como agentes organizadores de diálogos em torno de acervos — como uma curadoria de conversas em rede. A recente experimentação do projeto Brasiliana Museus com o Fediverso, e a oportunidade de explorar a possibilidade de ativa participação remota em processos museológicos online, fundamentam a proposta de modelo conceitual que o Ibram apresenta neste momento para os parceiros europeus, ilustrada no diagrama abaixo:

O desenho do modelo conceitual ilustra o plano para a parceria, que envolve a criação de projetos piloto com a oferta de formação no uso da tecnologia Tainacan para cidadãos representantes das etnias envolvidas na colaboração com o “Museu da Cultura Mundial” de Gotemburgo — Waiwai, Palikur, Munduruku e Ticuna. O potencial de funcionalidades de IA e Machine Learning é facilmente incorporado ao Tainacan em função da arquitetura de plugins do WordPress, o que permite adicionar a tradução dinâmica de itens textuais dos acervos tratados ao fluxo proposto. Da mesma forma, o potencial de ativação do Fediverso fica disponível para ser usado na interconexão das equipes curadoras, e de grupos de pesquisadores interessados. O Coordenador-Geral Dalton Martins destaca o aspecto que chamou a atenção dos pesquisadores na apresentação:

“…o desenho ilustra o deslocamento que ocorre no papel do museu, que sai da posição de produtor da verdade última sobre o acervo. Em seu novo papel de garantidor do espaço adequado para o diálogo sobre memória, o museu é um facilitador: desenvolve e implementa o ambiente para que este diálogo aconteça de forma aberta, transparente e documentada.”

Dalton Martins

Na CGSIM/Ibram, entendemos que a possibilidade apresentada pelo protocolo ActivityPub de utilização de infraestruturas típicas das redes sociais, em um ambiente de difusão de informações na web independente de plataformas centralizadas (corporações internacionais), representa uma oportunidade para as instituições de memória de interesse público. Significa que aspectos de governança do ambiente digital que hoje são dominados de maneira monopolística pelas empresas BigTech podem, em alguma medida, voltar a estar ao alcance da gestão de instituições que através dos tempos estiveram à cargo de preservar a cultura para gerações futuras.

De volta ao Brasil, Dalton nos conta que durante visita à Universidade de Leiden na Holanda, na sequência do encontro com os Palikur em Gotemburgo, Suécia, esteve em contato com especialistas locais que acompanham de perto as soluções tecnológicas para patrimônio cultural digital na Europa. Os colegas se mostraram surpresos com as novidades inseridas no modelo proposto para decolonização de acervos com base no software livre Tainacan:

“Em conversa com colegas que acompanham o trabalho da Europeana, destaca-se que o grande desafio para a evolução do processo de agregação de acervos do patrimônio cultural é a qualificação dos metadados das coleções integradas em suas instituições de origem. O plano de prover aos parceiros de agregação ferramentas integradas para apoiar o enriquecimento dos metadados, e de usar o protocolo ActivityPub no Tainacan para documentar o diálogo com públicos específicos, mostrou-se uma proposta atraente.”

Dalton Martins

Projetos de patrimônio cultural que se abrem à participação direta do público são comuns na Europa. Na Estônia, o envio de imagens digitais por cidadãos constitui método recorrente para recepção / coleta de novos acervos. Tais iniciativas reforçam a visibilidade do museu, atraindo novos públicos e aprofundando a conexão com sua comunidade de usuários.

Neste caso, também, a criação de descrições para os itens, no processo de documentação do acervo coletado junto ao público, deixa de ser tarefa solitária do especialista no museu. O processo de “documentação inclusiva” proposto pelos colegas na Estônia integra atividades externas de captação de informações ao fluxo de trabalho museológico. Inicia-se com a (1) Coleta (itens e informações provenientes do público externo), segue com a (2) Catalogação (pelo pessoal do museu), e passa para (3) Pesquisa e Descrições Adicionais, etapa que pode organizar, corrigir e suplementar informações sobre os itens, compondo até 80% da documentação para cada item*****. Tal processo parece desenhado para utilizar as funcionalidades integradas do protocolo ActivityPub com o repositório Tainacan.

“O que um museu pode fazer para garantir que os itens, informações e histórias adicionados pelo público tenham valor histórico no futuro? Ao registrar e armazenar informações provenientes do público, devemos também registrar e armazenar os dados de contexto de cada descrição: quem a inseriu; hora, local e situação; e todas as fontes adicionais.”

Description creation for museum objects in a digital environment. Co-creation – Kaie Jeeser (UH – University Heritage) – https://universityheritage.eu/en/description-creation-for-museum-objects-in-a-digital-environment-co-creation/

Museus, e demais instituições culturais de memória, podem atualizar o seu papel na sociedade do século 21 e tornarem-se espaços estratégicos no esclarecimento e no encaminhamento de soluções para problemas críticos da cultura digital. Para isso, é importante que essas instituições e seus especialistas encontrem formas de operar a tecnologia digital e a hiper-conexão da internet em sintonia com suas prerrogativas técnicas e institucionais.

No Ibram, seguiremos com a experimentação, e devemos criar a instância Mastodon “social.museus.gov.br” na próxima semana. Nos mobiliza a ideia de estabelecer uma infraestrutura de rede social em condições de abrigar instituições de memória de interesse público, na qual os dados da interação dos museus com seu público interessado fique também preservado, como acervo digital, e para pesquisa.

Por outro lado, trata-se de uma novidade a oportunidade de configurar o ambiente e as funcionalidades típicas de rede social do Fediverso como ferramentas do processo de diálogo sobre a atualização da documentação dos acervos em decolonização. Novidades sobre este processo compartilharemos aqui mesmo no blog.

Referências:

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